quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Conto: A faca manchada

Fizera-o novamente. E agora, olhava incrédulo para a faca manchada de um vermelho grudado, daqueles que parecem nunca sair.

Inquieto, buscava um plano de fuga, mas nenhum lhe parecia possível - em não mais que dois minutos sua mulher estaria de volta.

Saiu em disparada rumo ao banheiro.

O crime só tinha duas provas: uma na sua mão; a outra, enrolada em plástico-filme dentro do enorme freezer horizontal. Congelada, escondia-se da vista, refreando-lhe o desejo de nunca parar. Roubada a maciez da perfuração, sentia diminuído o prazer do golpe.

Na pequena pia de aspecto sujo, lavou a faca com a vitalidade de um jovem, excitado pelo ato cometido. Já era velho há tanto tempo, que não se recordava de ter sido jovem um dia. Questionava-se se seria esta a motivação do crime. Sentir-se jovem.

Pensou na esposa com tristeza. Em todas as vezes prometeu-a ser a última. Mentiu sempre. Sua vida era uma grande mentira.

Foi arrancado dos seus pensamentos pelo ranger do velho portão da entrada. Ouviu passos e correu de volta para a cozinha. Acreditou chegar a tempo de guardar a faca já limpa. Mas, mal se virou, deu de cara com a mulher, que lhe indagou sem exitação:

- De novo, Rodolfo? – Sua voz soava fria e incrédula.

Rodolfo gaguejou. Tentou falar e a voz não saiu. Desatou a chorar. Pensou ser uma cena ridícula, um velho como ele chorando feito criança; ainda mais na frente de uma mulher. Homem não chora na frente de mulher. Homem não admite nada para mulher.

Escolheu negar.

- Não, meu amor. Não fiz nada.

- Então, por que o choro? – Eliana torceu a boca com o seu trejeito costumeiro.

- Ah! Bateu saudades do Aroldão. Você sabe que ele era...

- Chega, Rodolfo. Basta de mentiras. Você nunca gostou do Aroldão. Já faz um mês que ele morreu e só agora você se lembrou de chorar? No enterro ficou lá, sorrindo e contando piadas de bicha. Você nunca gostou de bicha. Por que choraria pelo Aroldão?

Rodolfo sentiu-se perdido. Não conseguia pensar em nenhuma desculpa plausível para o choro. Sempre que a mulher vira-o chorar, a razão era a mesma. A mesma de agora.

Da última vez ela o surpreendeu ainda com a faca na mão. Ele chorou em seus braços e se desculpou. Exalava arrependimento de tal maneira, que ela sentiu-se impelida a continuar acobertando o seu segredo. Juntos limparam o chão e a faca salpicados de vermelho, antes que a filha chegasse para lhes deixar a neta. Se soubesse, a sua pequena jamais o perdoaria, como a esposa sempre o fazia.

Agora, Rodolfo percebia que Eliana não voltaria a compactuar com tal atrocidade. Pensou em admitir a culpa perante a mulher e lhe pedir ajuda. Sentia-se doente e cansado.

Seus crimes nunca foram fruto do querer. Cometia-os por se sentir tomado de uma intensa necessidade, maior do que ele próprio.

A mulher dirigiu-se ao freezer com determinação.

- Foi aqui que você escondeu?

Rodolfo congelou. Teria vacilado e olhado em direção ao freezer? Como era possível que ela soubesse?

Não, não poderia admitir.

- Pra que essa faca levantada, Rodolfo? Pretende usa-la novamente?! E então, onde escondeu desta vez?

Finalmente, se deu por vencido, sentando-se no tamborete com o verniz já descascado. Era melhor assim. De nada valia continuar a lutar contra a própria natureza. Pediria para ser internado se fosse preciso. Não suportaria mais passar por semelhante constrangimento. Era sempre a mesma coisa; a mesma culpa o invadia.

- Está aí dentro – resignou-se Rodolfo.

A mulher abriu o freezer com todo cuidado, balançando a cabeça em sinal de reprovação. Ao olhar para dentro, ficou lívida.

- Merda, Rodolfo! Você não tem juízo nenhum?! Pelo amor de Deus! Você já não é jovem, homem! Você está velho, diabético, já perdeu uma perna por isso e não se emenda. Meia lata de goiabada?! Meia lata, Rodolfo?!

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Um agradecimento especial à preta (aquela, da 81), minha editora predileta.

Mateus Medina
19/10/2011

6 comentários:

  1. Sua editora é um ESPETACULO... mas, o escritor é você! ;-)

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  2. Muuuito legal!!! E os sentimentos citados foram perfeitos tb. A reação dele, dela... Absolutamente tudo a ver com o contexto de um diabético insubordinado! rsrs

    E que bom que ele não era um psicopata maluco acobertado pela mulher! hahahaha

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  3. O psicopata maluco está guardado para o próximo conto rsrsrs

    Que bom que gostou. Eu tenho "trauma" de contos, e esse foi o primeiro que alguma vez sobreviveu, e ainda por cima foi publicado... rsrsrs

    bjos

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  4. Esse conto? Foi publicado aqui no blog, só. rsrsrsrs

    É que eu NUNCA guardei nenhum conto que escrevi, conforme disse num número qualquer aí do meme "100 fatos". E mais, eu NUNCA havia mostrado um conto meu a NINGUÉM. Eu sempre escrevi, li e apaguei, passados 2 ou 3 dias, no máximo... nenhum sobreviveu mais que isso... esse foi o primeiro.

    Mostrei a preta e pedi sinceridade nas críticas. Ela foi sincera, me ajudou a cortas os excessos, revisar frases sem impacto, alterar o "time line", que na primeira versão tava esquisito etc... e pronto, esse acabou por ver a luz do dia, porque acabei tomando coragem e publicando aqui, mas ainda tô na dúvida se presta mesmo... rsrsrssr

    bjos

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