quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Rótulos

Roubo sorrisos, temo a indiferença
Gosto de gente, mas não é sempre
Sou capaz de ditar uma sentença
Paraliso quando me vejo ao leme

Gosto de cama, de olhares juvenis
Sem reservas me entrego ao prazer
Desconfio do que se não diz
Quando em verdade devia se dizer

Me encanta o olhar mudo, a leveza
O silêncio que vem no tempo certo
Na mesma mala, alegria e tristeza,
No mesmo fado a praia e o deserto

Sou egoísta, tudo quero só pra mim
Ainda assim não me ouses rotular
Pois se um dia faltar a vida a ti
Dou-te a minha sem pestanejar

Mateus Medina
29/01/2013

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Ataraxia

Toco o céu, me arrasto no chão
E só um segundo separa
O dia quente da noite fria

O destino na palma da mão
Escorrega, foge, não para
Dou comigo a fazer poesia

Nos galhos, as folhas brincam
Balbuciam tal qual segredo
A chegada de um novo dia

Ao longe os trovões roncam
Fazem do vento brinquedo
Transportam minha ataraxia

Ao fim de um ciclo me escondo
Lambendo as feridas abertas
Antes que a pele se desfaça

Batem com enorme estrondo
Tambores de melodia incerta
A vida, a morte, tudo passa...

Mateus Medina
25/01/2013


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A Ampulheta



César levava o mundo embrulhado na mochila.

A passos lentos aproximou-se da cadeira do pai. Viu seus ralos cabelos brancos espalhados aqui e ali, com uma enorme cratera no meio. Passou uma mão pela própria cabeça, pensando que jamais teria um filho para rir da sua calvice, como ria da do pai. Na outra, apertava a ampulheta em forma de papel, escorrendo areia pela sentença que se podia ler no fim: "Positivo"

Como sempre, antes de seguir para escola, afagou a meia dúzia de fios brancos e rebeldes na cabeça do seu velho, para em seguida dar um tapa de leve, bem no meio da cratera, ao qual seguia-se um beijo. Roubou da terra todo ar que conseguiu, vestiu seu melhor sorriso e atravessou a sala, parando em frente a porta. Virou-se, encontrando o pai como sempre: debruçado sobre o jornal, olhos apertados, pescando as letras que lhe teimavam em fugir.

Deixou que a ampulheta amarrotada deslizasse para o chão, enquanto um pingo salgado lhe invadia a boca e disse:

─ Pai, tô indo embora.

─ O quê?

─ Tô indo embora!

─ Tranca o portão quando sair.

Mateus Medina
03/01/2013

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Pelo fogo



Quando chamaram-me covarde
Não tinham pequena ideia
De como dói - quando arde
O fogo invade, desnorteia

Julgado e condenado: um borra-botas
Esquecidas as vitórias do passado
Nem a morte concederam-me; idiotas
Tolo erro que não fora perdoado

Prometi que voltaria, todos riram
A humilhação é o bastante - disseram
Arrastado em estrume, me baniram
Gargalhadas ainda hoje reverberam

Fartaram-se com vinhos e canções
Deixei-os esquecer que existi
Segui o meu caminho de orações
Recordando do dia em que parti

Ouviram-me os deuses do inferno!
Dentro do fogo que outrora temi,
Danço agora a caminho do eterno
Destino que um dia escolhi

Esgueirei-me pela noite num rasgo,
Pelas sombras do dia naveguei
Vejo agora a turba dos carrascos
Todos vibram e cantam pelo rei

Observo com deleite o brotar
Do calor que para vingar veio
Exala o cheiro de carne a queimar
Enquanto a gargalhar me banqueteio

Mateus Medina
27/08/2012