segunda-feira, 24 de agosto de 2015

(Des)Ilusões


Imagem: https://goo.gl/WgytS5

Lembro do sorriso daquele rapaz como se fosse hoje. Andava ali pelos seus vinte e poucos anos e quando me viu, sentado naquele banco, se aproximou com certa timidez, mas uma alegria que era impossível não notar.

- Olá, desculpe... não quero incomodar, mas posso me sentar aqui ao lado do senhor?

Acenei que sim e sorri de volta. O sorriso do rapaz era contagiante.

- Eu o conheço - disse ele, ainda sem se despir do sorriso.

- Desculpe, mas não me lembro de você. De onde o jovem feliz me conhece?

- Eu o conheço dos seus livros. Amo todos os seus livros. Tenho todos! O senhor sabe tudo sobre o amor.

- Sinto desapontá-lo, mas ao afirmar isso, comete dois erros de uma só vez. Julgo que este sorriso de orelha a orelha seja de paixão, certo?

O jovem ignorou a primeira parte do que eu disse, com a típica capacidade de seleção dos jovens e respondeu apenas a pergunta.

- De certo modo, sim. Mas as coisas não estão indo bem - e mesmo assim, o sorriso se mantinha grudado ao rosto do rapaz, insistente. Fiquei confuso.

- Pelo sorriso, jamais diria - respondi num tom intrigado.

- O sorriso é por encontrá-lo. O senhor sabe tudo sobre o amor e tenho certeza que se puder me dedicar dez minutos, posso explicar o que se passa e não há ninguém melhor nesse mundo para me dizer o que fazer.

- Meu jovem, lembra-se dos dois erros que te falei há instantes? Então, o primeiro é que você não me conhece. Conhece os meus livros, a minha arte. E a minha arte não é o que sou, embora carregue muito de mim. O segundo é supor que eu saiba alguma coisa sobre o amor, quanto mais tudo. Sobre o amor não sei nada. E se o jovem encontrar pelo caminho alguém que afirme saber, pode tomá-lo, sem qualquer hesitação, por mentiroso ou inocente. 

Mateus Medina
24/08/2015

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Juntos pela família!






Manuel acordou num sobressalto. Olhou pela fresta da janela e concluiu que o sol já ia alto. Era domingo, dia de ir à igreja com a família. Estava atrasado. E logo hoje, que era dia da “Caminhada da Família com Cristo”.

Enquanto corria para a casa de banho, ligou a TV. O Jornal da Manhã dava conta da discussão do projeto de adoção por casais homossexuais. “Que aberração!”, exclamou em voz alta, sem sequer se dar conta. O simples fato de se pôr o tema em discussão era uma afronta a Deus, à família tradicional e à sociedade. Que tipo de criação essas crianças teriam? Por essas e outras é que o mundo andava como andava.

E têm a lata de chamar a isso “família”, num telejornal da manhã. Família? Família era a do Manuel. Um marido, uma mulher e filhos - naturais, sem essa invenção de inseminação artificial, porque Deus não aprova essas coisas.
          
  Irado com aquela afronta matinal, desistiu do banho. Vestiu as calças, e se limitou a trocar a camisola. Enfiou a mão numa mochila e tirou de lá uma especialmente feita para a “Caminhada da Família com Cristo”. Na parte de trás havia uma foto do Manuel, a mulher e os filhos. Todos sorridentes. Mesmo por cima da foto lia-se: “Juntos pela família”.

Olhou para a foto e sorriu, contente por fazer a sua parte na preservação de tão nobre instituição.

Quando já ia na porta, uma mulher mexeu-se na cama e perguntou: “Então, meu gigante, como é, não me pagas hoje de novo?”, Manuel sorriu e respondeu: “Já me conheces, sabes que sou de confiança. Semana que vem pago tudo. Põe na conta”.
 

terça-feira, 10 de março de 2015

Concessões



Posso seguir os teus passos
Fazer toda a viagem contigo
Ser a tua fortaleza, teu escudo
Dar-te colo, carinho e abrigo

Posso enxugar as tuas lágrimas
Com sorte, impedi-las de cair
Mostrar-te a beleza da estrada,
A esperança no que há de vir

Contra os teus demônios, nada posso
Se não me permites conhecer
O que os encoraja e alimenta
As concessões que os fazem viver

Mateus Medina
10/03/2015

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Apenas um vislumbre do Poeta

Ser poeta é tentar o impossível
Insistir no erro crasso de crer
Persistir na tradução do indizível
De tristeza, todo dia morrer

Ser amado e amar de outro jeito
Incompreender e ser incompreendido
Alcançar o mais alto dos feitos
P'ra depois desmontar os abrigos

É não temer a escuridão insondável
Que o grande mistério encerra
Passar pelo inverno intolerável
E conta-lo feito primavera

Ser poeta é prescindir da certeza
E aceitar a mais sublime ignorância
Encontrar a salvação na beleza
Ser velho sem deixar de ser criança

Mateus Medina
24/02/2015

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A saudade é uma moeda



Há na saudade tristeza e dor,
O cinzento desespero da ausência,
O egoísmo intolerante e burro
Há na saudade inútil insistência

Que havemos de fazer com o vazio?
Como encontrar explicação?
A saudade não responde a nada
Das respostas só cria ilusão

Há entretanto um outro lado,
Posto que a saudade é moeda
Atira-se ao ar e não se escolhe
Em qual das faces se queda

Há nela também o sorriso
A lembrança infindável do amor
Há na saudade uma brisa qualquer
Que alivia a insuportável dor

A saudade é o paradoxo final
Da lembrança que torna presente
Quem já não podemos tocar

Há na saudade a essência imortal
Daqueles que embora ausentes
Jamais deixaremos de amar

Mateus Medina
06/02/2014